Como o Design Soa
É noite: todas as fontes agora falam mais
alto. E também a minha alma é uma fonte que jorra.
É noite: só agora despertam todos os
cantos dos amorosos. E também a minha alma é o canto amoroso.[1]
(…) E assim falou o velho enfeitiçador,
olhou à sua volta com ar matreiro e pegou, depois, na sua harpa.[2]
Os pensadores reconhecem o poder da música, e a sua suprema
força, sobretudo quando irrompe de uma noite escura e silenciosa. As noites
inquietantes descritas nas narrativas de Proust eram interrompidas pelo som de
trompas, oriundas dos bosques mais trôpegos e profundos. As noites de Nietzsche[3],
por sua vez, eram atravessadas por cantos inflamados e troantes dos amorosos, e por fontes que,
abundantemente, jorravam e incandesciam a alma.
Em ambos os casos, a noite, essa morada das trevas,
era povoada por desassossegos e inquietações que somente eram aquietados, no fim,
por majestosos cantos, ou por vozes complacentes oriundas dos seres que habitavam
os lugares mais recônditos da terra.
A um dado momento o filho de Zeus, Anfion, que tinha
um irmão robusto, dedicado às artes da caça e do pastoreio, conseguiu vencê-lo
ao mover, apenas com os sons seráficos provindos de uma lira, pesadas pedras
destinadas à construção da muralha de Tebas[4].
Na obra de Nietzsche, também o velho e deambulante
Zaratustra ameaçava dominar os adversários com a sua antiga harpa.
Porém o encantamento pelas melodias etéreas e sagradas
provenientes da harpa de Zaratustra, não iria perdurar eternamente, nem os sons
ciciantes dos instrumentos das velhas orquestras, estes representativos da
natureza, iriam ser apreciados para todo o sempre.
Haveria quem, no advento da indústria, se voltasse antes
para os ruídos histriónicos dos motores e se deleitasse com a velocidade arrebatadora
dos veículos.
Luigi Russolo foi um desses entusiastas. No ano de
1913, dirigindo-se ao compositor Balilla Pratella, num fervoroso Manifesto
Futurista, anunciava uma arte nova, a arte dos ruídos. O pintor afirmava que a
época anterior ao som-ruído tinha representado apenas uma existência em
surdina, e exaltava a capacidade da máquina poder vir a produzir sons intensos
e variados, sons complexos e dissonantes: “O ruído, irrompendo, confuso e
irregular (…) não se nos revela nunca por inteiro e reserva-nos incontáveis
surpresas. Temos a certeza de que, ao escolhermos e coordenarmos todos os
ruídos, enriqueceremos os homens com uma volúpia insuspeitada”[5].
Como o Design Soa – A Exposição
Um objeto de design não pode, apenas, constituir um deleite
para a vista. Muitos têm sido os objetos desenhados por designers que
contemplam somente um dos sentidos: a visão. Também não pode ser, unicamente,
um recetáculo de funções, sem a pretensão de despertar emoções, ou apelar a
outros sentidos. Walter Gropius, em 1919, no programa da escola de Bauhaus em
Weimar, afirmava a importância do convívio dos estudantes, fora do recinto
escolar, e do contacto com as diferentes artes, como a poesia, o teatro, a música[6].
Com este desejo de confluência das artes, Gropius confirmava a importância dos
diferentes sentidos, além da visão, para a formação dos seus alunos, e para a
criação de novos objetos artísticos ou utilitários.
Muitos dos objetos de design, e os dados históricos estão
repletos de exemplos, são criados com vista a satisfazer o olhar, esquecendo as
sensações levadas a cabo pelo tato, pelo peso, ou pela temperatura[7].
Bruno Munari, no seu livro “Das coisas nascem coisas”, refere, precisamente a
acústica, nos espaços públicos, como sendo, também, um elemento importante a
ter em conta pelos designers, para o bem-estar das pessoas. É justamente, num
desses outros sentidos, que esta exposição se detém: a audição.
O som, nos objetos, pode surgir como indicador, como alerta
ou pode servir como agente de comprovação de uma dada operação. Também nos
avisa quando algo não está bem, ou quando não estamos em segurança. Alguns
semáforos, por exemplo, são acompanhados por sons, quando a luz colorida muda.
Além do aspeto visual, e da sensação táctil que o objeto transmite, o som
também pode enfatizar as suas funções. E o objeto encerra, em si, várias dessas
funções, como as funções prática, estética, simbólica e lúdica.
Os designers e artistas, cientes dessa presença do som nos
objetos - que aumentaram, com o advento da indústria - tomaram partido das suas
qualidades expressivas, e potenciais rememorações invocadas.
Richard Sapper, nos anos 80 desenhou uma chaleira de apito,
9091 Bollitore (1983), e muito embora a sua carreira tivesse sido assinalada
por um trabalho profusamente ligado à indústria, soube contornar a rigidez da
produção em série, aplicando uma nota pós-modernista, criativa e humorística às
suas peças.
Henry Bertoia, o designer que todos conhecemos por ter
desenhado a icónica Two -Tone Side Chair, foi também, ele próprio, um músico, e
criador de esculturas/objeto, desenhadas, única e exclusivamente, para serem
usadas como instrumentos musicais, em composições sonoras experimentais.
Convém, também, debruçar-nos sobre aqueles objetos de
proveniência anónima, e do modo como os mesmos foram usados em experiências
sonoras, como as realizadas por Pierre Henry, em “Variations pour une porte et
un soupir”, de 1963. Estas experiências compreendiam um conjunto de gravações
de ruídos, sobretudo portas a ranger, a bater, ou a difundir longos sons, como
se fossem lamúrias, ou choros.
Recordemos Edgar Varèse e o seu Poème èlectronique, uma
composição musical electrónica, criada para o Pavilhão Phillips, o então
edifício projetado por Xenakis e Le Corbusier. Ou John Cage, o compositor que
dizia que “tudo o que fazíamos era música”, e a sua emblemática obra, “4´33”.
Esta exposição, com o objetivo de captar um novo “olhar”
sobre os objetos, que não seja o do uso imediato, ou o da fruição visual,
procura estimular o visitante para uma escuta dos objetos, dos seus murmúrios,
das suas ressonâncias, das suas canções, bem como para a compreensão de que os
sons também são propriedade dos objetos, os complementam, e orientam os seres
humanos.
Como o Design Soa será assim, uma oportunidade para revelar
a sensibilidade sonora de designers e de artistas, numa comunhão das artes. Uma exposição onde o som é protagonista, e estabelece
relações, ou ressonâncias, entre as várias obras.
Umas vezes as obras
oferecem-nos deleitosas melodias, outras vezes, já mudas, invocam-nos memórias
de sonoridades há muito recônditas e esquecidas. Tomando-nos a todos de
sobressalto. "Como o Design Soa" pretende ser um corolário de
emoções, e de experiências sensoriais, que, através do som, reverberam para uma
experiência a várias mãos e a múltiplas tonalidades. Temos assim o som como
elemento agregador, que une o design à arte, e a arte à poesia.
Carla Carbone, 4 de Dezembro de 2022